Ontem, dia vinte e um de abril de dois mil e catorze, um
grupo de trinta pessoas protestou contra
umas das festas mais hipócritas da república brasilis, coisa de parafernália
medieval, que tinha o senador Aécio como mestre de cerimônias: ode à memória de
tiradentes, o alferes alçado à ícone da liberdade brasileira, que, nas
pinturas, ostenta a mesma barba de cristo, nosso tão fadado 21 de abril, assim mesmo,
numérico. O que passo a relatar aqui é a minha experiência nesse dia, armado
com minha sony, ante um poder desproporcional, mas desproporcional também pela
imensa boçalidade, medalha da inconfidência no cu dos outros é refresco.
1. Trezentos compartilhamentos
Esse evento tomou corpo com a divulgação desta uma foto que,
fazendo alusão à desastrosa, porém importante, pesquisa do IPEA, denunciava a
agressão à praça tombada, obrigada a receber uma imensa estrutura metálica para
proteger do tempo os agraciados com a medalha, os convidados, o coral e os simpatizantes, alterando o fluxo de trânsito durante quase quinze dias no principal
cruzamento do centro nervoso da cidade. "A praça tiradentes não merece ser
estuprada" foi uma foto quase trezentas vezes compartilhada no facebook,
quase sempre acompanhada por comentários que escancaravam a indignação de uma
população que, uma vez por ano, em nome da liberdade, tem privado seu direito
constitucional de ir e vir, sob o peso de centenas de policiais, cavalos,
helicópteros. Pois essa foto foi tomada como foto de capa de um evento que se
chamou "Luto Pela Liberdade", evento que teve cento e onze
pessoas confirmando presença numa proposta de cortejo fúnebre, todos vestidos
de preto contrários à ausência de liberdade, à farra com dinheiro público, à
politização de uma comemoração popular.
2. O pé rela no pó
Será sempre assim, as pessoas utilizam o 'comparecer' dos
eventos do facebook para dar uma força, talvez achem que isso seja
participação, e talvez seja. O fato é que, na hora do vamos ver, havia cerca de
trinta pessoas empunhando cartazes, gritando palavras de ordem, esticaram até
uma imensa carreira de farinha de trigo, fazendo alusão ao helicóptero do pó,
no chão da rua direita. Um transeunte declarou "ao passar aqui o pé rela
no pó". O fato de um primeiro esvaziamento, naturalmente enfraqueceu o
movimento, porque os próprios organizadores esperavam mais, os cento e onze
'comparecerei', afinal, tiveram sim sua parcela de culpa, mas também os quase
trezentos compartilhamentos, mas eis que ali se estabelecem os limites do mundo
virtual, onde as pessoas são aguerridas, politizadas, engajadas, mas o virtual não é táctil, portanto, frágil.
Ali se escancara que os mecanismos virtuais são um meio e quem tem coragem,
extrapola. Um instrumento fundamental, mas limitado. Se escancara, também, que,
como sociedade, somos passivos. Será o catolicismo? O governo militar? A grande
mídia? Houve um comentário em que uma moradora que reside em frente ao local
onde a mobilização estacionou, no meio da rua direita, relatou um medo que os
manifestantes fossem agredidos com bombas de efeito moral. Temos uma polícia
truculenta, seu histórico recente de contenção de manifestações prova isto. Mas
também temos uma polícia que recebe mal, que é explorada por um regime
vexatório e este evento provava isto: ao jantar à luz de velas realizado no
centro de convenções os policiais não foram convidados, talvez os comandantes
agraciados com a medalha da inconfidência. E isto inaugura o próximo tópico
deste texto.
3. Polícia para quem precisa
Na barreira de grades de ferro montada para conter os
manifestantes, os trinta, havia duas cordas principais de policiais. Na
primeira, pm´s de pé, alguns ostentando compridos cassetetes de madeira, coisa
mais viril impossível, ali, de pé. Na segunda a tropa de choque, com seus
escudos de capitão américa, sob o orgulho do poder excepcionalmente instituído,
a privação do direito de ir e vir, capacetes que reluziam fogos da liberdade
que vinham da praça sitiada. Passamos pela polícia montada e eu fiquei me
perguntando se um cavalo é mais eficiente que uma motocicleta. Se um cavalo é
mais barato. Mas continuo achando que a questão é a virilidade. O príncipe pm
sobre seu corcel. A gente se sente inferior ante sua presença emblemática, o
garantidor do estado de direito, o guardião do jantar à luz de velas do
agraciado com a medalha da inconfidência e a gente ali, condenado a assistir à
festa pela rede minas, ao vivo. Disseram que na rede minas era possível ouvir
ao fundo, como um ruído de canal mal sintonizado, os gritos dos trinta. Gogós
saudáveis, estes. Houve um momento em que a manifestação se deslocou para o
beco. A partir desse momento três soldados começaram a nos acompanhar. Alguém
bradou que, quando fora assaltada há poucos dias, não tinha escolta. Três
soldados educados, um deles até falou sobre estar em ouro preto. E tentamos
subir a ladeira atrás da escola de farmácia para ter acesso aos fundos do museu
da inconfidência. Elegantemente escoltados. Ao chegar na corda de policiais, um
outro pm disse: "pode passar". Mas aí viu um black bloc entre nós.
Pronto. Pediu pro manifestante tirar a camisa do rosto. Exigiu documentos. Ele
mostrou a identidade mas permaneceu de máscara. O pm conferiu a idoneidade do
sujeito. O black bloc estava limpo. Mas depois, ó surpresa, não podíamos mais
passar por ali. Uma pm recebeu um telefonema e pronto. Voltamos. Escoltados.
4. A tática black
bloc
Pausa pra uma roda de conversa. Alguém trouxe batatas e
água. Desceu algum militar superior. Três soldados o escoltaram até a porta do
hotel. Uma manifestante a seu lado, dizendo, ao pé de seu ouvido, algumas
palavras de ordem. O superior disse, com ar superior: vá estudar. Ela ficou
indignada. Voltamos ao lanche. Conversamos sobre os black blocs,
alguém questionou a tática de cobrir o rosto. Mas aí lembramos do episódio
recente, descrito logo ali, no capítulo três, quando o pm investiu apenas
contra o rapaz de rosto coberto. Percebemos, em conjunto, que todos nós, de
rosto descoberto, a cara da pátria posta na mesa, éramos amistosos demais. Nós,
de cara pintada. Que uma boa cara coberta é um símbolo do poder do povo. Fora
proteger os direitos civis do indivíduo, a cara coberta assusta as autoridades.
Eles não querem ver os rostos para saber com quem dialogam, eles querem saber a
quem processar, privar os direitos. Eu mesmo, até ali, tinha minhas dúvidas
sobre a tática. Mas acho mesmo que o confronto é necessário. Foi uma conversa
bonita. Não entre trinta, mas entre uns nove. Pouca gente, mas este texto,
inclusive, é uma forma de difundi-la, agregar vozes. Comentários e retornos
serão bem vindos. A luta continua.
5. Pouca gente?
Em pouco tempo os trinta haviam se dissipado. Uns na
direita, outros na coronel alves, perto do teatro municipal. Mas aí nos
reorganizamos, porque uma manifestante, que possuía credencial, havia sido
barrada, sendo, ela só, impedida por cinco policiais, à beira da truculência. E
ali foi o momento mais tenso, uma mulher contra cinco homens armados. Depois,
os trinta se encontraram com alguns dos duzentos e quarenta agraciados. As
mulheres de salto alto, com a sacolinha da medalha (eu fiquei pensando: quantas
peças de teatro custaram essas sacolas, meu deus?), descendo uma leve ladeira,
eram saldadas com os gritos "vai cair, vai cair". Percebemos que já
não fazíamos mais fita quando diminuiu drasticamente o número de policiais que
nos vigiava. Só quatro. Se aproximava o fim da manifestação. E o começo da
discussão. Percebemos, ali, que tínhamos sido poucos, mas fortes. E que começava
ali a manifestação do ano quem vem. Que seria necessária uma mobilização
contínua. Queremos saber quanto custa essa farra. Queremos saber os critérios
para concessão da medalhinha. Queremos o direito de ir e vir. Queremos a
realização de uma festa simples e popular. Os trinta serão multiplicados.
Amanhã vai ser maior.
6. Indivíduos
Durante a filmagem eu me perguntava por quem aquelas trinta
pessoas estavam ali. Logo abaixo da manifestação é a famosa lama de ouro preto,
dois bares que concentram quase todo fim de semana um grande público nas
ladeiras, entre automóveis e motocicletas que vandalizam as vias seculares.
Naquela noite havia mais gente ali bebendo do que aqui, gritando. Os trinta até
desceram para tentar cooptar mais alguém. Sem sucesso. Voltamos às grades. Mas
ali, refletindo com minha sony, eu percebi que eu mesmo não estava ai por causa
daqueles outros, nem da população marginalizada, nem mesmo da população
excluída da própria casa. Estava ali porque quis. Consciência minha. Encontrei
umas senhorinhas com uma camisa rosa que gritavam "Aécio, vim aqui só pra
te ver", mas que não viam a cerimônia, porque colocaram um tapume na praça
para impedir que a população assistisse à farra. Uma lástima. Depois vi a juventude
do psdb desfilando pela praça. Perguntei pra uma senhorinha e para um rapaz
como eles chegaram ali. Ele tinha vindo de Valadares, de ônibus. Mas não soube
me responder o que o trouxera, ideologia ou cooptação. Ela, a senhora, estava
gritando e não conseguiu me ouvir. Refleti que nesses caso, a pior estratégia é
a da cooptação. Fui chamado de petista, me mandaram votar na Dilma, embora
estivesse de preto, como a maioria dos trinta, salvo duas exceções. Mas estava
ali, de consciência limpa, sabendo que ela, minha consciência, era meu
parâmetro de tudo e que minha função agora não é cooptar ninguém. É afirmar que
me sinto mais forte e que essa força me faz feliz. É muito mais simples. E que
a felicidade é revolucionária. E que a felicidade é a única revolução possível.
Mudar-se. Mudar o mundo é consequência.