terça-feira, 27 de março de 2012

DE CHICO SCIENCE A LAVRAS NOVAS: OURO PRETO É PEDRA E PALAVRA



Modernizar o passado é uma evolução musical. Quando Chico Science surgiu, abriu caminho para uma pá de propostas musicais que especulavam a conversão da própria aldeia num universo expandido. O cara conseguiu, falando do mangue, redesenhar o Brasil. Isso não é novo. Algumas parábolas chinesas, dessas de mil anos, já especulavam isso. E também o Gandhi, que dizem, não era nenhuma Tereza de Calcutá. Dito isso, voltemos para nossa taba, ou alguém duvida que temos um quelóide oriundo de uma flechada na coxa? Essa taba em foco, no entanto, foi coberta pela engenharia portuguesa de construção e pelo oportunismo europeu em tempos de expansão colonial. Chegaram num lugar com uma geografia irregular, um buraco cercado de montanhas por todos os lados e deveriam ter dito, como seria de se esperar: que buraco, não será possível construir um cidade aqui nunca. Mas o ouro era tanto e de tão boa qualidade que disseram: dane-se! Vamos construir uma cidade aqui mesmo. E construíram uma espécie de serra pelada, mas com vestido de anquinhas. Vila Rica, uma das mais populosas cidades daquele tempo, com um enorme contingente de escravos. Conta-se que havia gente aqui que tinha ouro, mas não tinha comida. Samba do crioulo doido, casa da mãe Joana, imagine-se a cena: mais de cem mil pessoas espremidas num lugar que hoje, expandido pela ocupação desordenada das décadas, cabem setenta mil (contando os distritos e quem sabe como é longe ir de bicicleta do Salto a Miguel Burnier entende do que estou falando). E o tempo transformou a barbárie em jóia de nossa arquitetura colonial. Elegeram um dentista pra cristo (quase literalmente). Dizem que ele lutou pela liberdade. Ante a forca, eu imagino um trombadinha de hoje que, voltando numa máquina do tempo a aquele período, dissesse para o alferes,: ‘perdeu, playboy’! O alferes foi enforcado, alguns de seus amigos foram deportados. Também não sei se é correto chamarem de liberdade o que eles queriam. Pra mim é mais uma espécie de convenção do PMDB. Mas o fato é que o tempo, quase sempre ele, colou a esse movimento a luta pela liberdade de um povo. Benzeram a pedra sabão, (permitam-me um parêntesis, será o único: hoje, mijam. Fecha parêntesis.) Ouro Preto virou uma Meca tupiniquim, dizem que quem não vem aqui pelo menos uma vez na vida, não pode ser chamado de brasileiro. E as pessoas vem. Quer uma oportunidade melhor pra usar a máquina digital comprada em doze vezes? Excursão escolar, viagem de fim de semana, ir a BH e aproveitar pra dar uma passadinha em Ouro Preto... O maior barato da cidade é a foto. E é mesmo. Mais o quê, afinal? Eis uma pergunta. As pessoas vem, buscando ecos forjados de liberdade fictícia e fazem o quê? Sobem ladeira, descem ladeira, foto. Esse lastro pesado da cidade a seu passado ficcional, porque o passado factual é torpe e denso, cru, será uma enorme âncora que não lhe permite navegar por outros mares? Seremos lúcidos o suficiente pra entender que isso é uma invenção? Não, apesar do que parece, não estou fazendo aqui um ataque à hipocrisia da história. Até porque a história não é hipócrita. Esse texto, pelo contrário, é uma apologia à adaptabilidade humana. Tem homem no Himalaia, no deserto do Saara, no raio que os parta. Se, portanto, a gente consegue, como sociedade, inventar verdades e passar a viver e conviver com elas, isto significa que não estamos presos às tradições, aos costumes, aos hábitos, como devires inexoráveis. Não existe devir inexorável. Não existe um passado que nos condicione o futuro. Não existe passado e nem futuro. Existe uma construção constante e vibrátil. Vamos atualizar Ouro Preto, meu povo! Começar a viver uma cidade no aqui e agora. Quem venha o mundo. Mas quando vier, que extrapolemos a photo. Ouro Preto deveria ter uma fundação internacional de cultura negra, fazendo a ponte, transmutada, revista, infinitamente melhorada, entre o Brasil e a África. Esse seria uma nova e fascinante diáspora. Refletir a arte negra de ontem, incorporando o rap, o samba. Confirmar que história permanece. Que somos história. Permanecemos história. E o louco é perceber que a cidade está instrumentalizada: temos uma universidade federal pública, uma fundação de arte estadual, um museu da inconfidência, repasses de verba exclusivamente cultural, um festival de inverno. Mais do que isso, temos o festival de inverno. Aí acontece a aberração: você vai a uma instituição e ela te diz: não, aqui a gente não faz teatro, porque quem faz teatro aqui é a outra. Na outra, o mesmo, só que ao contrário. Fica essa sensação que nada acontece. Um monte de gente trabalhando, alguns projetos acontecendo, e nada acontece. Vem o japonês e... photo! Temos pouquíssimos artistas de expressão nacional. Alguns pintores e só. Claro, temos o Jorge dos Anjos. Mas ele é um cara que atualizou Ouro Preto. Mais do que isso: ultrapassou Ouro Preto, ética e esteticamente. Retomou a diáspora negra. Imprimiu-se na tela. Modernizou o passado! Sem um pé calcado no presente, Ouro Preto é pedra. E só. Não estou propondo colocar asfalto na rua direita. Muito pelo contrário. Estou propondo fazer um duelo de Mc´s, com um na sacada do museu da inconfidência e o outro na sacada da Casa dos Contos, com transmissão on line de um pra outro. Estou propondo fazermos um festival de teatro de países de língua portuguesa. Um encontro de poesia visual projetada nas casas da Vila Aparecida, salto de paraglider do morro Santana, vôlei de praia em Lavras Novas. Mais produção, mais dinheiro, mais arte. Porque só assim, viva, a cidade valoriza mesmo seu passado. Se o passado é aqui, ele interessa. Se é lá, incomoda, atravanca, atrapalha. Não é fácil. Eu mesmo tento, mal e porcamente. Mas não é fácil. Quem disse que seria?