Modernizar o passado é uma evolução musical. Quando Chico
Science surgiu, abriu caminho para uma pá de propostas musicais que especulavam
a conversão da própria aldeia num universo expandido. O cara conseguiu, falando
do mangue, redesenhar o Brasil. Isso não é novo. Algumas parábolas chinesas,
dessas de mil anos, já especulavam isso. E também o Gandhi, que dizem, não era
nenhuma Tereza de Calcutá. Dito isso, voltemos para nossa taba, ou alguém
duvida que temos um quelóide oriundo de uma flechada na coxa? Essa taba em
foco, no entanto, foi coberta pela engenharia portuguesa de
construção e pelo oportunismo europeu em tempos de expansão colonial. Chegaram
num lugar com uma geografia irregular, um buraco cercado de montanhas por todos
os lados e deveriam ter dito, como seria de se esperar: que buraco, não será
possível construir um cidade aqui nunca. Mas o ouro era tanto e de tão boa
qualidade que disseram: dane-se! Vamos construir uma cidade aqui mesmo. E
construíram uma espécie de serra pelada, mas com vestido de anquinhas. Vila
Rica, uma das mais populosas cidades daquele tempo, com um enorme contingente
de escravos. Conta-se que havia gente aqui que tinha ouro, mas não tinha
comida. Samba do crioulo doido, casa da mãe Joana, imagine-se a cena: mais de
cem mil pessoas espremidas num lugar que hoje, expandido pela ocupação
desordenada das décadas, cabem setenta mil (contando os distritos e quem sabe
como é longe ir de bicicleta do Salto a Miguel Burnier entende do que estou
falando). E o tempo transformou a barbárie em jóia de nossa arquitetura
colonial. Elegeram um dentista pra cristo (quase literalmente). Dizem que ele
lutou pela liberdade. Ante a forca, eu imagino um trombadinha de hoje que,
voltando numa máquina do tempo a aquele período, dissesse para o alferes,: ‘perdeu,
playboy’! O alferes foi enforcado, alguns de seus amigos foram deportados.
Também não sei se é correto chamarem de liberdade o que eles queriam. Pra mim é
mais uma espécie de convenção do PMDB. Mas o fato é que o tempo, quase sempre
ele, colou a esse movimento a luta pela liberdade de um povo. Benzeram a pedra
sabão, (permitam-me um parêntesis, será o único: hoje, mijam. Fecha
parêntesis.) Ouro Preto virou uma Meca tupiniquim, dizem que quem não vem aqui
pelo menos uma vez na vida, não pode ser chamado de brasileiro. E as pessoas vem.
Quer uma oportunidade melhor pra usar a máquina digital comprada em doze vezes?
Excursão escolar, viagem de fim de semana, ir a BH e aproveitar pra dar uma
passadinha em Ouro Preto... O maior barato da cidade é a foto. E é mesmo. Mais
o quê, afinal? Eis uma pergunta. As pessoas vem, buscando ecos forjados de
liberdade fictícia e fazem o quê? Sobem ladeira, descem ladeira, foto. Esse
lastro pesado da cidade a seu passado ficcional, porque o passado factual é
torpe e denso, cru, será uma enorme âncora que não lhe permite navegar por
outros mares? Seremos lúcidos o suficiente pra entender que isso é uma
invenção? Não, apesar do que parece, não estou fazendo aqui um ataque à hipocrisia
da história. Até porque a história não é hipócrita. Esse texto, pelo contrário,
é uma apologia à adaptabilidade humana. Tem homem no Himalaia, no deserto do
Saara, no raio que os parta. Se, portanto, a gente consegue, como sociedade,
inventar verdades e passar a viver e conviver com elas, isto significa que não
estamos presos às tradições, aos costumes, aos hábitos, como devires
inexoráveis. Não existe devir inexorável. Não existe um passado que nos
condicione o futuro. Não existe passado e nem futuro. Existe uma construção
constante e vibrátil. Vamos atualizar Ouro Preto, meu povo! Começar a viver uma
cidade no aqui e agora. Quem venha o mundo. Mas quando vier, que extrapolemos a
photo. Ouro Preto deveria ter uma fundação internacional de cultura negra,
fazendo a ponte, transmutada, revista, infinitamente melhorada, entre o Brasil
e a África. Esse seria uma nova e fascinante diáspora. Refletir a arte negra de
ontem, incorporando o rap, o samba. Confirmar que história permanece. Que somos
história. Permanecemos história. E o louco é perceber que a cidade está
instrumentalizada: temos uma universidade federal pública, uma fundação de arte
estadual, um museu da inconfidência, repasses de verba exclusivamente cultural,
um festival de inverno. Mais do que isso, temos o festival de inverno. Aí
acontece a aberração: você vai a uma instituição e ela te diz: não, aqui a
gente não faz teatro, porque quem faz teatro aqui é a outra. Na outra, o mesmo,
só que ao contrário. Fica essa sensação que nada acontece. Um monte de gente
trabalhando, alguns projetos acontecendo, e nada acontece. Vem o japonês e...
photo! Temos pouquíssimos artistas de expressão nacional. Alguns pintores e só.
Claro, temos o Jorge dos Anjos. Mas ele é um cara que atualizou Ouro Preto.
Mais do que isso: ultrapassou Ouro Preto, ética e esteticamente. Retomou a
diáspora negra. Imprimiu-se na tela. Modernizou o passado! Sem um pé calcado no
presente, Ouro Preto é pedra. E só. Não estou propondo colocar asfalto na rua
direita. Muito pelo contrário. Estou propondo fazer um duelo de Mc´s, com um na
sacada do museu da inconfidência e o outro na sacada da Casa dos Contos, com
transmissão on line de um pra outro. Estou propondo fazermos um festival de
teatro de países de língua portuguesa. Um encontro de poesia visual projetada
nas casas da Vila Aparecida, salto de paraglider do morro Santana, vôlei de
praia em Lavras Novas. Mais produção, mais dinheiro, mais arte. Porque só
assim, viva, a cidade valoriza mesmo seu passado. Se o passado é aqui, ele
interessa. Se é lá, incomoda, atravanca, atrapalha. Não é fácil. Eu mesmo tento, mal e porcamente. Mas não é fácil. Quem disse que seria?
Prezado Juliano
ResponderExcluirSou a favor de Ouro Preto para os ouropretanos que amam Ouro Preto. Nós precisamos de compreender o valor da cidade como histórica mas precisa nos oferecer entretenimento, esperança de emprego, cultura para o povo e não só para a elite.
Adorei o seu texto. Vou enviar o mesmo para pessoas que com certeza vão acrescentar mais comentários a respeito.
Obrigado, Beth, envie mesmo e parabéns pela defesa. Abraço forte!
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