segunda-feira, 7 de setembro de 2009

POUR ELISE: A ARTE DE ENXERGAR ABACATES




Fui assistir ao primeiro espetáculo do Grupo Espanca!, de Belo Horizonte, uma das principais montagens mineiras dos últimos tempos, catapulta de Grace Passô a referência da dramaturgia contemporânea brasileira. Em detrimento do meu atraso na história - apesar da história andar a passos largos - teço e compartilho impressões sobre a obra.
1. A poesia como força motriz: Há na construção um embate entre uma força trivial - pessoas comuns, sem nenhum heroísmo aparente, sem nenhuma grande dor exposta, pessoas que tendem a nossas tias, ao professor de física do segundo grau, aos 'invisíveis' - e uma força visceral - a poesia contundente das metáforas e das palavras expostas, da rearticulação das relações corporais, do deslocamento dos sentidos (o cachorro, o abacate, o silêncio). Neste embate a poesia atua como força reveladora, ou como perversão. Assim como o riso na boa comédia, ou a força no teatro físico, ou o risco no circo. É ela que tira o espectador do lugar, que alimenta a trama - tão simples, trivial, do tipo "pode acontecer comigo, apenas não me foi revelado, mas se eu salpicar poesia em minha vida..."
Um parelelo interessante é o terceiro espetáculo do grupo, o "Congresso Internacional do Medo". Lá o trivial dá lugar a uma situação muito específica, distante - mesmo que medo seja comum, participar de um congresso sobre o medo não é. Então a poesia já não revela, não há atrito, ela parece estar aquem de um cenário mais complexo. Em "pour elise" minha tia ganha outra cara, saio e é como se eu fosse uma outra pessoa, procurando abacates alheios.
Ao fim do espetáculo Daniel me disse: "hoje não quero sair." Eu "porquê?" Daniel "cuidado com o que planta no mundo..." A obra nos atravessou, atravessar pessoas está em sua gênese, ela QUER isto. Há um trato deslavado com a emoção, uma coragem. Isto reforça minha opinião que a arte pós-contemporânea é mais careta que a arte contemporânea e que toda desconstrução dos anos 60 e 70, todo o vazio e toda feiúra dos 80, toda cibernetização dos 90, tudo ainda é arte contemporânea. E que a re-significação dos sentidos e a re-valorização da palavra são traços de nosso tempo, contemporâneos, mas não mais arte contemporânea e sim uma reação a ela, a seu vazio conceitual - que quando erigido tinha todo sentido.

2. O uso do espaço cênico - Nunca tinha visto o espaço italiano ser tão bem explorado, a caixa cênica é, literalmente, o cenário do espetáculo, cenário cheio de possibilidades de uso e entendimento. No quadrinho aquele espaço branco entre um quadrinho e outro é chamado sarjeta e ela é fundamental para a história. No espaço branco muita coisa acontece. A coxia de "Pour elise" é uma sarjeta maravilhosa, espaço-temporal, dinâmica. As pausas são respiração. E texto, às vezes mais contundentes que as cenas. Há uma construção temporal delicadíssima. E consistente. A vizinha que conta a história é a dramaturga: ela vê e diz: 'não se envolva.' Ela mente - envolve-se dos pés a cabeça! Mas eu não minto. Não tenho tanto cuidado com o que planto no mundo, mas procuro abacates maduros pra fazer vitamina!

Um comentário:

  1. Espetáculos como esse, nos lembram que o teatro precisa de muito pouco para ser algo “espetacular”, sem grandes parafernálias, mas com uma dramaturgia (tanto de texto quanto da cena) que é capaz de fazer o que é, foi e sempre será a função do teatro: estabelecer uma comunicação real entre o espetáculo e os espectadores. Os personagens são tão comuns que poderiam ser qualquer um de nós, em qualquer momento e em qualquer lugar, com nossos questionamentos, nossas buscas, nosso posicionamento no mundo. Belo texto. Adorei. Abraços.

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